segunda-feira, 6 de setembro de 2010

De quem é esse jegue?


De quem é esse jegue? De quem é esse jegue? De quem é esse jegue? Ele quer te morder...
Numa dessas tardes de domingo que a melancolia nos implora um lugarzinha para um chá das cinco, senti um fio de emoção perpassar meu semblante. Flagrei-me na sala de visitas, o lugar menos habitado de minha casa, com um álbum de fotografias a mão. Vasculhava retratos, buscava lembranças, enfrentava a potência da memória que se faz presente na ausência.
Contraí o rosto num sorriso tímido, de uma curiosa alegria produzida na saudade. Estava diante do Jegue, estava diante do meu frágil irmão menor e da minha perversa irmã mais velha. Não conseguia esquecer a música de Genival Lacerda. Não conseguia lembrar ao certo quem era aquela que se assemelhava a mim no jeito contrariado diante da vida. Lembrei da família de Fabiano, pensei na Baleia, ao lembrar de Baleia, lembrei do meu ausente Benji que foi obliterado da foto, mas fazia parte daquele mundo em que os dias passavam sem as marcações do relógio, sem o registro das agendas.
Uma pergunta martelava minha cabeça, mais que a música de Genival – por que diabos, na minha geração, toda mãe insistia em fotografar os filhos montados num jegue pintado de zebra ? – permaneci alguns minutos reticente.
Pouco tempo depois, o silêncio da sala vazia foi interrompido pela campainha do meu celular. Atendi, era mamãe. Hesitei, mas a curiosidade era tamanha, antes que ela perguntasse como eu estava, pouco depois do alô de conveniência eu perguntei: Por que o jegue?
- Jegue, quê jegue?
- Aquele, pintado de zebra?
- Jegue ou zebra? Do que você está falando minha filha?
- A senhora sabe muito bem do que estou falando, do jegue, da zebra, do burro, todas as mães sabem. O jegue da foto.
Mamãe ficou em silêncio. Sem entender muito bem, quis mudar de assunto. Preferi não insistir, mudamos de assunto.
Na manhã seguinte liguei pra minha irmã, queria que ele me ajudasse a entender o jegue. Antes que eu perguntasse, ela pediu que eu abrisse meu orkut, estava eufórica, tinha criado uma conta no orkut pra minha sobrinha e lá havia depositado as fotos do Book da sua pequena.
Abri o orkut da minha sobrinha, vasculhei as fotos engraçadinhas para as quais a pequena parecia ter posado contrariada. Vasculhei aquele orkut infantil e vi uma série de outros membros da mesma faixa etária, filhos de amigas, primas, vizinhas. Pensei na alegria que movia aquelas mães a produzirem aquelas vitrines virtuais. Pensei no book, inevitavelmente essa reflexão me remeteu à imagem do jegue. Pensei na repetição do ciclo, na alteração das formas.
Atordoada, desliguei o telefone sem nada mais dizer a minha irmã. Em seguida, ela me liga e pergunta:
- Mana, o que aconteceu? Ligou pra me perguntar alguma coisa e depois me deixou falando sozinha. Não gostou do book?
- Ah, que isso, gostei sim...
- E o que queria?
- Nada não... liguei pra ouvir sua voz. Ah queria saber que horas a Raissa vai se apresentar na creche.
- Ah sim, 18 horas no auditório da escolinha. Não perca, ela vai dançar quadrilha, vestidinha de caipira, coisa mais fofa, já provei o vestido, fiz o teste de maquiagem, tá uma gracinha.
- Imagino...pode deixar, passo na escolinha mais tarde.
Voltei a trabalhar, concluí minhas pesquisas e saí correndo pra assistir a apresentação da minha sobrinha. Pra variar, cheguei alguns minutos atrasada, a apresentação já estava pela metade quando avistei minha mãe e minha irmã no canto do palco com um sorriso no rosto e umas lágrimas nos olhos. Ali, naquele instante de emoção, de engraçamento com aquela cena pitoresca passei a compreender melhor o jegue.
Ao final da apresentação, abrecei vó, mãe e filha e compartilhei daquela alegria e aquele orgulho gerados pela exposição tão simples e bizarra. E pensei: quem sabe o dia que eu tiver um filho eu entenda porque o kitsch é umas das formas mais sublimes de amor.
Nunca mais perguntei do jegue, e acho mesmo que a foto ficou bem divertida. Agora, numa moldura colorida, o jegue, meu irmão menor, minha irmã mais velha, o nosso falecido cachorro de estimação - obliterado da imagem -, o amor de nossa mãe e o apoio de nosso pai, decoram a minha sala de estar, trazendo uma serenidade que só a arte (de amar) pode proporcionar.

Débora Corrêa.

Um comentário:

  1. Hahaha, bem legal...
    realmente, na ausência a memória fica muito potente!

    sua prosa é muito boa. Mande mais!

    abraço, do seu amigo chapecoense

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